No dia 16/10, noticiou-se o seqüestro de duas adolescentes em Santo André (SP), ambas de 15 anos, por um rapaz de 22 anos, que acabou matando uma, sua ex-namorada, e ferindo gravemente a outra com disparos de revólver. A imagem das meninas pedindo socorro pela televisão desvelou uma realidade nacional que sempre ficou escondida debaixo do tapete.
De fato, tragédias como essa ocorrem diariamente. No dia 11/10, um marido assassinou sua esposa a facadas em Recife (PE). Em 12/10, um homem de Ceilândia (DF) matou sua mulher com arma de fogo. Ambos recusaram-se a aceitar que as companheiras quisessem se separar.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que 70% das mulheres assassinadas no mundo sejam vítimas de seus próprios companheiros.
Em Portugal, há uma morte por semana ("Portugal Diário", 4/9/08). As estatísticas brasileiras são igualmente espantosas: 66,3% dos acusados de homicídio contra mulheres são seus parceiros (pesquisa do Movimento Nacional de Direitos Humanos, 1998). Só no Distrito Federal, há semanas em que são assassinadas pelo menos quatro mulheres, compondo uma aterradora média de um homicídio a cada dois dias ("Correio Braziliense", 23/7/06).
Tais estatísticas se referem só aos crimes consumados. Porém, se computarmos as tentativas de homicídio em que as vítimas conseguem sobreviver -inclusive com seqüelas-, chegaremos a um número assustador.
Por ser a tentativa de separação sempre uma situação dramática para o gênero feminino, os casos se incluem no conceito de femicídio, termo cunhado para denominar a eliminação sistemática de mulheres. A antropóloga Rita Segato esclarece que, tal qual o genocídio, o femicídio não atinge o indivíduo, mas a categoria a que ele pertence ("A Complexidade da Violência", 2006).
O fenômeno ainda não é compreendido pelo Estado e pela sociedade. Tome-se como exemplo o caso de Santo André, em que parte da mídia tratou de justificar o comportamento do acusado, alegando que ele "amava" a vítima. Uma apresentadora de TV até amenizou os fatos, sugerindo que o acusado não entregaria a menina "porque estava junto da pessoa amada". Alguns "especialistas de plantão" chegaram a culpar a vítima, por ter renegado "amor tão grande".
Durante o período do seqüestro, perguntei a um policial especialista por que os atiradores não atingiam o seqüestrador. Ele justificou dizendo que o rapaz não visava dinheiro, mas só seu "amor". Após a tragédia, o próprio comandante da operação deu declaração semelhante à imprensa.
Essa visão busca justificar os atos dos assassinos, classificando-os como "passionais". O femicídio, porém, não tem nada de paixão ou de amor. São assassinatos premeditados de mulheres, apenas pela sua condição. São crimes de ódio, ou, na definição das sociólogas Ana Liési e Lourdes Bandeira, são crimes de poder, que "evidenciam a força do patriarcado como uma instituição que propõe e sustenta a autoridade masculina para controlar, com poder punitivo" ("Violência Doméstica - Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar", 2008).
É claro que o sentimento de rejeição afeta igualmente homens e mulheres. Porém, a prática de femicídio, antecedida pela clássica ameaça "se não ficar comigo, não ficará com ninguém!", compõe um sentimento de poder masculino. Os assassinos têm amor e paixão, sim, mas por si próprios. Eles se consideram tão importantes e superiores que não admitem que uma mulher possa dispensá-los.
Tal sentimento de posse é resquício das épocas em que as mulheres eram consideradas propriedade do macho.A educação familiar e social das crianças ainda é no sentido de afagar o ego masculino, aceitando suas fraquezas e explosões violentas, e de convencer as meninas a serem "princesinhas" dóceis, submissas e compreensivas.
Outro exemplo de incompreensão do fenômeno ficou patente em recente julgado do STJ, que afastou a aplicação da Lei Maria da Penha a ex-namorados. Com essa decisão equivocada, meninas como as vítimas de Santo André não poderão pedir que os acusados fiquem proibidos de se aproximar ou que sejam presos. Eles poderão agir livremente.
Essa situação nos equipara ao regime Taleban, no Afeganistão, onde as mulheres podiam ser apedrejadas na rua se namorassem, pois elas deviam se guardar para um único homem. No Brasil, além dos maridos, os namorados também se julgam os senhores absolutos das parceiras. As tragédias relatadas revelam nossa incapacidade de impedir a tradição.
Nesse momento de luto nacional, a reflexão é o que nos resta.
Por FAUSTO RODRIGUES DE LIMA, Promotor de Justiça do Distrito Federal e coordenador do livro "Violência Doméstica - Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar"; e KARINA ALVES SILVA, advogada.
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